Do programa de alfabetização em Angicos, no Rio Grande do Norte, à Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, passando pela Universidade Harvard, nos Estados Unidos, e pelo Departamento de Educação do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) em Genebra, na Suíça, Paulo Reglus Neves Freire (1921-1997) é autor do terceiro livro mais citado no mundo, na área das ciências humanas.
Apesar da empreitada frustrada, a experiência chilena foi responsável por internacionalizar o pensamento de Freire, na visão de Gajardo. É dessa época o livro Pedagogia do oprimido, publicado primeiramente nos Estados Unidos em 1970, sob o título Pedagogy of the Oppressed, pela editora Herder and Herder.
No mesmo período, organizações católicas como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) também criaram campanhas de alfabetização e educação voltadas para as classes populares. “A forma como Freire organizou sua metodologia, aproximando-se da realidade e da linguagem dos adultos que queria alfabetizar, caiu como uma luva para diferentes organizações que, naquele momento, também estavam realizando trabalho educativo com populações vulneráveis”, comenta Haddad, ao citar a afinidade do educador com grupos ligados à teologia da libertação, corrente do catolicismo surgida na América Latina nos anos 1960 e que tem como premissa a opção preferencial pelos mais pobres.
Nesse sentido, estudiosos identificam diferentes influências em sua formulação teórica, incluindo o marxismo, a teologia da libertação, o existencialismo e a pedagogia crítica. “Uma questão central em seu percurso intelectual envolve a ideia de que a educação é um ato político”, pontua Kohan, ao se referir às iniciativas de alfabetização, que são inseparáveis da ideia de formar cidadãos.
Apesar de reconhecer a importância desse esforço, Dullo também aponta a relação de autoridade existente entre Freire e sua equipe e as comunidades alfabetizadas. “A ideia era que os alunos aprendessem a ler e adquirissem autonomia para pensar sua realidade, mas isso acontecia por meio de uma relação vertical entre aluno e professor no plano dos conceitos políticos. É uma tensão que não se resolve”, reflete.
A pedagoga Marcela Gajardo, da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso), no Chile, menciona avaliações críticas ao seu método de alfabetização. “Alguns pesquisadores sustentam, com razão, que o método servia mais para instruir a votar do que para ensinar a ler e escrever. Nessa época, na maioria dos países latino-americanos, era necessário estar alfabetizado para ter direito a voto”, recorda Gajardo.
A bióloga Juliana Rezende Torres, que integra o Grupo de Estudos Paulo Freire da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), explica que em suas empreitadas de alfabetização, ele considerava que os jovens e adultos já tinham uma leitura de mundo, mesmo sem saber ler e escrever. “Em todo processo de alfabetização, Freire defendia que a leitura da realidade vem antes da escrita da palavra”, afirma.
No livro, Kohan escreve que estudos no Brasil e no exterior “procuram identificar a filosofia de Paulo Freire, entendendo por tal os pressupostos filosóficos que situam suas ideias a partir de sua inscrição em determinada corrente de pensamento”.
Dessa forma, identificava as palavras mais significativas para cada grupo, denominadas “palavras geradoras”, como tijolo ou parede, por exemplo, para operários da construção civil, e a partir delas desenvolvia o processo de alfabetização. “Ele elaborou uma concepção de educação libertadora que se contrapõe à concepção tradicional de educação, em que o professor é visto como detentor do conhecimento e o aluno como um ser em que as informações devem ser depositadas”, explica.
“Há muito material disperso sobre Freire, que deveria ser organizado e catalogado em um memorial”, defende Biccas, coordenadora das atividades do Ano 100 com Paulo Freire, que acontece este ano na FE-USP e envolve a realização de aulas, ciclos de debates, oficinas e um seminário internacional.
“Há uma ampla correspondência relativa a esse período nos arquivos do Departamento de Ordem Política e Social [Dops], salvaguardados no Arquivo Público do Estado de São Paulo, que merece ser melhor analisada”, considera.
A metodologia criada por Freire é que prevê a atribuição desse sentido a elas. Empenhados em libertar os oprimidos, o pedagogo, sua equipe e profissionais que trabalham com ela também acabam, de alguma forma, exercendo um papel de autoridade. Por isso, afirmo que por trás da pedagogia da libertação se oculta uma vontade de poder.”
Além disso, o Instituto Paulo Freire, que fica em São Paulo e abriga o espólio do pedagogo, detém fontes que podem embasar novas pesquisas, como aulas gravadas em áudio e a biblioteca pessoal do pedagogo.
Traduzida para mais de 45 idiomas e com 40 edições em inglês, Torres considera Pedagogia do oprimido sua obra mais importante. “É o terceiro livro mais citado no mundo em pesquisas nas ciências sociais e o mais mencionado no campo da pedagogia”, informa, referindo-se às conclusões de levantamento realizado pela London School of Economics, em 2016, a partir de análises do Google Scholar.
No mesmo período, recebeu um convite para atuar na Divisão de Educação e Cultura do recém-criado Serviço Social da Indústria (Sesi), onde desenvolveu, com uma equipe de educadores, um projeto para conhecer a realidade de populações em extrema pobreza. “Com isso, Freire percebeu que essas pessoas precisavam ampliar sua leitura de mundo e de si mesmas, compreendendo situações de opressão”, comenta a pesquisadora da UFPE.
Freire começou a trabalhar no Instituto de Desenvolvimento Agropecuário (Indap), vinculado ao Ministério da Agricultura, em um projeto que pretendia ensinar pequenos proprietários rurais a ler e escrever, além de noções básicas de cálculos matemáticos. “Leitura e cálculo eram conhecimentos fundamentais para que os campesinos desenvolvessem novas formas de produção e convivência. Freire, então, adaptou sua proposta metodológica para a realidade chilena”, relata Gajardo, que em 2019 publicou livro para analisar a trajetória do pedagogo no país.
Ao recordar que Freire recebeu mais de 40 títulos de doutor honoris causa, o sociólogo e cientista político da educação Carlos Alberto Torres, da Escola de Educação e Estudos da Informação (Gseis) e diretor do Instituto Paulo Freire da Universidade da Califórnia em Los Angeles (Ucla), afirma que ele é considerado, nos Estados Unidos, fundador do campo da pedagogia crítica, corrente de pensamento que enxerga a educação como um elemento de formação intelectual e moral, mas também de transformação social.
O trabalho durou até o ano seguinte, quando a Unesco comunicou que a parceria seria interrompida. Segundo Gajardo, o cancelamento representou um golpe para ele, que já tinha feito muitos amigos e estava bem instalado com a família no país. “O contrato não foi renovado porque o governo chileno considerou que a aplicação de seu método de alfabetização ocasionou um processo de radicalização entre setores do campesinato e populações urbanas marginalizadas”, conta, ao lembrar que o educador relata esse acontecimento no livro Pedagogia da esperança (Paz e Terra, 1992).
Em 1980, depois de 16 anos no exílio, o pernambucano regressou ao Brasil. Em 1989, na gestão de Luiza Erundina, assumiu a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. “Freire conseguiu realizar um projeto que o permitiu ir além da aplicação de um método de alfabetização, inserindo as diretrizes de seu pensamento pedagógico na formulação da política de educação do município”, comenta o biólogo Antonio Fernando Gouvêa da Silva, da UFSCar, que pesquisa a obra do educador há mais de 20 anos e também integra o Grupo de Estudos Paulo Freire da instituição.