As listas são um instrumento crítico de grande relevância, pois trazem, subjacente, um conceito de literatura — este conceito talvez seja mais importante do que as obras escaladas. Ao escolher apenas dez romances brasileiros eternos, segui alguns critérios: não repetiria livros do mesmo autor; privilegiaria obras que trouxeram alguma inovação formal; e daria preferência a livros que fossem mais do que uma história, que tivessem um valor metonímico, representando um período literário, um painel histórico, um grupo social, uma tendência estética. Podem ser considerados como marcas comuns a todas as narrativas listadas o desejo de construir um retrato do Brasil e o investimento em uma linguagem identitária — cada título, logicamente, à sua maneira. Teríamos aqui então um pequeno mapa do grande romance nacional.
Essa obra, de José Cândido de Carvalho, se passa no litoral carioca, onde um narrador mentiroso, que adora contar vantagem, revela em cada episódio a sua ingenuidade de roceiro. O coronel, que acreditava em lobisomens, é enganado pelas figuras urbanas, chegando ao fim deste mundo místico.
Apesar disso, com a maturidade, é comum ver os títulos com outros olhos. É surpreendente como uma segunda visita nas obras pode revelar que, por trás de palavras, existe um belo tesouro na nossa estante.
Na Manaus dos anos 1950 e 60, dois meninos travam uma amizade duradoura. De um lado, Olavo, ou Lavo, menino órfão, criado por dois tios; de outro, Raimundo, ou Mundo, filho do aristocrático Trajano. A fim de realizar suas inclinações artísticas, Mundo engalfinha-se numa luta contra o pai, a província, a moral dominante e os militares que tomam o poder em 1964. A luta se transforma em fuga rebelde, que alcança Berlim e Londres, de onde ele contata o amigo Lavo, agora advogado.
Pais, avós, empregadas, vizinhos, namoradas, prostitutas, michês, mendigos e apresentadores de programas de auditório são as personagens liricamente torpes que frequentam este primeiro romance de Marcelo Mirisola, um retrato provocante da geração classe média dos anos 1970 e 1980. Na obra, conforme escreveu Moacyr Scliar para a Bravo!, “a linguagem é crua, desbocada, escatológica; ele (o autor) não respeita nenhum limite, rompe qualquer tabu”.
Cristovão Tezza expõe as dificuldades, inúmeras, e as saborosas vitórias de criar um filho com síndrome de Down, Felipe, de 26 anos. O autor aproveita as questões que apareceram pelo caminho para reordenar a própria existência: a experimentação da vida em comunidade quando adolescente, a rotina como ilegal na Alemanha para ganhar dinheiro, as dificuldades de escritor com trinta e poucos anos e alguns livros na gaveta, e a pretensa estabilidade com o cargo de professor universitário.
O livro de Ariano Suassuna apresenta uma incorporação da cultura popular. O narrador é preso por conta de um trágico episódio do sertão e isso constrói o romance como uma peça de defesa, buscando provar a sua inocência.
Publicou diversos livros, entre eles Inferno provisório, De mim já nem se lembra, Flores artificiais, Estive em Lisboa e lembrei de você, Eles eram muitos cavalos, A cidade dorme e O verão tardio, todos lançados pela Companhia das Letras. Suas obras ganharam os prêmios APCA, Jabuti, Machado de Assis e Casa de las Américas, e foram publicadas em quinze países. Em 2016, foi agraciado com o prêmio Hermann Hesse, na Alemanha. O antigo futuro é o seu mais recente romance. Atualmente, vive em Cataguases (MG).
P.S.: sim, atento (a) leitor (a), alguns escritores mereceriam constar da lista com mais de um título – Machado de Assis, por exemplo, poderia seguramente ter quatro livros elencados –, mas preferi optar por citar apenas um de cada autor.
Essa obra, de Guimarães Rosa, é conhecida como uma enciclopédia do Sertão. A história é narrada por Riobaldo e no contexto, ele esclarece sua inocência em relação a três episódios centrais, sendo o pacto com o diabo, o amor por Diadorim e as mortes que ele comete na jagunçagem.
A obra de Lima Barreto representa os marginais no Rio de Janeiro, que sonham com a modernidade. Acompanhe o drama de um mulato muito inteligente, mas que por conta de sua cor, é violentamente discriminado.
Leia uma desconstrução bem irônica do Brasil, que retrata a hipocrisia que escancarava a elite do século XIX. No contexto, Machado de Assis é um narrador defunto, que zomba das pessoas com quem conviveu. Essa foi uma das obras mais inovadoras daquele século.
O fotógrafo Cauby está convalescendo de um trauma numa pensão barata, numa cidade do Pará prestes a ser palco de uma nova corrida do ouro. Sua voz é impregnada da experiência de quem aprendeu todas as regras de sobrevivência no submundo — mas não é do ambiente hostil ao seu redor que ele está falando. O motivo de sua descida ao inferno é Lavínia, a misteriosa e sedutora mulher de Ernani, um pastor evangélico, retirada das ruas e das drogas no passado.
Dodô Azevedo leu “On the Road”, de Jack Kerouac, pela primeira vez aos 16 anos. A partir daí, sua vida não seria mais a mesma. Ele fez planos, mais de uma vez, de ir para os Estados Unidos refazer a viagem de Kerouac, mas esse sonho se tornaria possível somente anos depois, em 2003. Dodô queria encontrar a contracultura que ainda existia nos EUA. E ele encontrou. Com seu inglês “macarrônico”, viajou sem medo e sem direção; experimentou o peyote; e tornou-se conhecido da Costa Leste a Oeste.
Os temas universais vida, morte e renovação formam o eixo em torno do qual se desenrola este romance de João Ubaldo Ribeiro. Trata-se da história de um homem muito velho que, apesar de detentor da sabedoria trazida por todos os seus anos de existência, ainda busca apreender algum sentido na vida. Um romance com trama simples e leitura fluida, que, como destacou o professor de teoria literária da Unicamp, Alcir Pécora, à Folha: “lê-se com gosto, do começo ao fim”.
Em 1739, o fidalgo português Luís de Assis Mascarenhas, governador da Província de São Paulo e Minas dos Goyazes, dirige-se ao Arraial de Santana com o propósito de preparar as minas de ouro para serem província autônoma. Um filho bastardo do Anhanguera — o descobridor das minas de ouro —, que segue de perto a comitiva de Dom Luís exercendo funções de vigia, é o narrador dos acontecimentos sempre insólitos que pontuam a viagem pelo sertão inóspito das terras goianas.
Esse é conhecido como um dos livros mais importantes de Clarice Lispector. A história não tem início e nem fim. Tanto o começo, quanto o final, conta com reticências. Isso indica que o leitor pode acompanhar as metáforas e ainda se questionar sobre o que acontece.
No Brasil, principalmente quanto se fala em escritores nacionais, muitas pessoas acabam criando antipatia por alguns títulos, por conta de avaliações burocráticas na escola. Ao invés do apego à leitura, um efeito contrário pode ser gerado.
Testemunho, memória, masturbação, ficção, História, Cabala, Bíblia e literatura permeiam a biografia de um jovem judeu em busca do seu lugar face à Diáspora e aos guetos na contemporaneidade. Perseguido pelo dibouk (demônio) e em busca da mulher, o personagem narra sua vida, encontros e desencontros repletos de ironia, iconoclastia, citações e plágios literários, desde a infância até seus 33 anos. Em tom poético e profético, ou vulgar e leviano, o autor descreve momentos vividos e dogmas enfrentados.
Duas irmãs, filhas de um fazendeiro fluminense, são as figuras centrais deste romance. Clarice, a mais velha, sempre esteve fadada a se casar com o filho do dono da fazenda vizinha, enquanto Maria Inês, a mais nova, acaba por se tornar testemunha de um abuso que dilaceraria a vida da irmã. Afonso Olímpio, o pai, vaga como uma sombra enigmática e taciturna, enquanto a mulher, a impotente Otacília, vai se dando conta de sua infelicidade, e tenta resgatar as filhas da desgraça silenciosa.
Mario de Andrade nos apresenta um divertido retrato do Brasil. Na história, o índio Macunaíma é retratado desde o seu nascimento até a sua morte. Com isso, são apresentadas aventuras em que ele é ajudado por seus irmãos e outros personagens, na busca de uma pedra que havia recebido de seu grande amor.