A obra-prima do escritor brasileiro Ariano Suassuna foi escrita em 1955 e levada a palco pela primeira vez em 1956 no Teatro Santa Isabel. Auto da Compadecida é uma peça dividida em três atos e tem como pano de fundo o sertão nordestino. A obra foi uma das primeiras produções teatrais a carregar forte na tradição popular.
João Grilo e Chicó são os amigos inseparáveis que protagonizarão a história vivida no sertão nordestino. Assolados pela fome, pela aridez, pela seca, pela violência e pela pobreza, tentando sobreviver num ambiente hostil e miserável, os dois amigos usam da inteligência e da esperteza para contornarem os problemas.
Apesar de ser chamado apenas de padeiro na peça, no filme ele é chamado de Eurico. Sendo assim, o personagem representa a burguesia que está preocupada apenas com enriquecer. Inclusive, ele se aproveitava do trabalho de seu funcionário João Grilo. Por ser rico, ele tem muita influência na cidade e na Igreja.
Os personagens humildes são vítimas da opressão provocada pelos coronéis, pelas autoridades religiosas, pelos donos das terras e pelos cangaceiros. Convém sublinhar que a peça é contada do ponto de vista dos mais humildes, e é com eles que o espectador cria imediata identificação.
As opções de performance do grupo SaGrama para a trilha sonora, fundadas no Movimento Armorial, com o intuito de resgate da paisagem sonora do universo interiorano e rural nordestino, em sua essência de improvisação, porém respaldada por técnicas composicionais complexas, amarram a intersemioticidade proposta por Guel Arraes.
Para além da linguagem nordestina, convém lembrar uma série de elementos nos quais o autor investe para causar um efeito de verossimilhança: a narrativa faz, por exemplo, uso de objetos típicos nordestinos, figurinos habitualmente usados por moradores da região e até mesmo replica cenários do sertão que ajudam o espectador a imergir na história.
Apesar disso, a Compadecida intercede por eles e permitem que voltem à vida. Assim, novamente na Terra, eles entregam todo dinheiro à Igreja e Chicó convence Antônio Morais a permitir que ele se case com sua filha, Rosinha. Atualmente, O Auto da Compadecida é considerado uma das maiores obras da literatura nacional e sua adaptação virou um clássico do cinema.
Devido ao enorme sucesso de público, os realizadores cogitaram criar um longo metragem (projeto que efetivamente seguiu em frente e deu origem ao filme O Auto da Compadecida, de Guel Arraes).
Mas foi no ano seguinte, em 1957, no Rio de Janeiro, que a peça ganhou grande destaque. O Auto da Compadecida foi encenado no Rio de Janeiro durante o 1º Festival de Amadores Nacionais.
João Grilo e Chicó representam o povo oprimido e toda a peça é uma grande sátira da triste e cruel realidade nordestina. Apesar do tema tratado por Suassuna ser denso, o tom da escrita é sempre baseado no humor e na leveza.
Cada qual, dramaturgo e cineasta, operando com o que sintoniza como “afinidade eletiva”, ou seja, com predileções de sensibilidade para cada projeto estético, transcria semioticamente a fim de fazer pensar sobre o sentido da história, tanto na direção do passado, como memória, quanto na do futuro, como vir-a-ser, como reflexão e reelaboração do vivido e possibilidades de transformação.
Importa-nos, neste artigo, analisar uma dessas traduções criativas, o filme O Auto da Compadecida, dirigido por Guel Arraes e lançado no ano 2000. Trata-se de uma produção que faz reverberar o imaginário de Suassuna, hibridizado com o imaginário do cineasta Guel Arraes, que recria não apenas suas memórias pessoais, mas também dá a ver uma memória coletiva que evoca aspectos de nossa identidade brasileira. Interessa-nos perscrutar as interfaces do imaginário com a memória e a identidade no contexto da obra cinematográfica. Para tanto, voltamos nosso olhar para a linguagem verbal, visual e sonora do filme, a fim de compreender como essas instâncias expressivas revelam paisagens culturais e imaginárias construídas artisticamente.
Muda o suporte, a linguagem e os modos operacionais na tradução intersemiótica do teatro para a minissérie e desta para o cinema. Desenhos, fotografias, vídeos, entre outros procedimentos trabalhados artesanalmente compõem a forma criativa da linguagem cinematográfica de Guel Arraes. Esse movimento de abrangência poética que faz reverberar de maneira enriquecida a obra dramática de Suassuna passa pela elaboração da trilha sonora executada pelo grupo SaGrama.
A peça Auto da Compadecida é profundamente marcada pela linguagem oral, Suassuna possui um estilo regionalista que pretende replicar com precisão a fala do nordestino:
Importante sinalizar que o filme (2000) é posterior à minissérie da Globo (1999), na qual Guel Arraes optou por expandir a narrativa, criando relações amorosas e de suspense à moda dos folhetins, como era estratégia recorrente na televisão brasileira. Esses recursos não invalidam o posicionamento de Arraes na defesa da causa social. Na cena do julgamento, quando Nossa Senhora Compadecida intercede em favor de João Grilo, uma fala emotiva é acompanhada por fotos em preto e branco evocando a miséria dos sertanejos; assim também a cena final dos três personagens - Rosinha, Chicó e Grilo - como retirantes - convoca o espectador a se solidarizar com os injustiçados. Associa-se a isso, como em um movimento cíclico, a primeira cena do filme, em que os protagonistas Chicó e Grilo convidam o povo para assistir a história do homem mais corajoso do mundo - cena que termina na igreja com a projeção da Paixão de Cristo, em uma referência metalinguística ao papel do cinema em dar a ver e a denunciar a luta incessante de personagens desprivilegiados pela sobrevivência em meio aos poderosos.
O espaço narrativo, os cenários, o figurino - a dupla de protagonistas com roupas leves, chinelos de couro - faz rememorar os brincantes nordestinos, bem como alude aos tons de uma atmosfera medieval, que reúne religiosidade e sátira.
Para começar, é necessário explicar que o auto é um gênero medieval que conta com elementos cômicos e moralizantes. Ou seja, trata-se de um tipo de texto curto e engraçado, mas que guarda em si uma lição de moral ou ensinamento. Desse modo, o que Suassuna faz é trazer este gênero para a realidade brasileira e adaptar os elementos do auto para o sertão do nordeste.
A figura do pícaro, uma espécie de anti-herói dos contos orais da Península Ibérica desde a Idade Média, é recriada nos dois textos, com características próprias do Brasil, na personagem João Grilo, ao tentar ascensão social em um meio hostil, em uma rígida sociedade estamental - argumento defendido ficcionalmente por Suassuna e por Arraes.
Trata-se do próprio Jesus Cristo, que além de aparecer como figura divina, também aparece como homem comum. Além disso, ele é um homem negro, o que causa espanto nos demais personagens da peça. Apesar de bom, é representando sem misericórdia.
JOÃO GRILO: Está esquecido da exploração que eles fazem conosco naquela padaria do inferno? Pensam que são o cão só porque enriqueceram, mas um dia hão de me pagar. E a raiva que eu tenho é porque quando estava doente, me acabando em cima de uma cama, via passar o prato de comida que ela mandava para o cachorro. Até carne passada na manteiga tinha. Para mim, nada, João Grilo que se danasse. Um dia eu me vingo.
Intercede por todos durante o julgamento final e intervêm com comentários inimagináveis como, por exemplo, quando toma a palavra para defender o Cangaceiro Severino. Nossa Senhora é profundamente bondosa e tenta levar todos para o paraíso: ela busca argumentos racionais e lógicos para justificar possíveis falhas de caráter.
Sendo assim, Chicó e João Grilo entraram na Igreja para entregar o dinheiro prometido ao pároco. No entanto, foram interrompidos por uma gritaria e tiros que, descobriu-se, era um ataque do cangaceiro Severino. Desse modo, o homem atira e mata os personagens: bispo, o padre, o sacristão, o padeiro e a mulher.
A surpresa surge quando os respectivos religiosos são enviados direto para o purgatório enquanto Severino e o seu capanga, alegadamente criminosos, são mandados para o paraíso. Nossa Senhora consegue defender a tese de que os capangas eram naturalmente bons, mas foram corrompidos pelo sistema.