Com a chegada do Natal, tudo parece mágico, com luzes e cores natalinas, presentes e decoração de bonecos de neve. Esta última, é uma divertida ideia conhecida pelas pessoas há séculos, mas poucos sabem o significado sobrenatural que foi dado aos bonecos de neve no passado, e como eles surgiram.
É realmente incrível, mas não dá para reconhecer nada do livro neste filme. Arcos dramáticos importantíssimos, como as constantes recaídas de Harry (Michael Fassbender), seja no álcool, ou com a ex-mulher Rakel (Charlotte Gainsbourg), e tudo que envolve Katrine (Rebecca Ferguson) e suas motivações, são jogados para escanteio sem a menor cerimônia. Mas aí você pergunta, e quem não leu livro. Receio que seja uma situação ainda pior, pois quem leu tem em mente o que poderia ter sido e a lembrança de algo melhor. Quem não leu ganhará apenas o mais genérico dos filmes de suspense, sem qualquer personalidade, sem alma, personagens apenas rascunhados e bons atores perdidos, lutando para não se afogar.
Sem dúvida que o filme deixa-se ver, mas é o que se chama de “unappealing”. Parece desconjuntado e não cria empatia emocional. Por isso, quando alguém, revelada a identidade de Snowman, pede a Fassbender que vá lá e mate – “Mate, mate, por favor!” – o apelo parece despropositado. Antes disso, Hole, do fundo do buraco em que vive, já se havia queixado ao chefe de polícia da sua síndrome de abstinência por crimes violentos. Oslo seria pacífica demais para o seu gosto. Mas é justamente essa ideia que o filme quer subverter. Esse mundo claro, luminoso, “clean”, consegue ser bem “sujo”. A humanidade é pervertida, etc e tal, mas sempre há esperança. No final, um outro surto de violência vai manter o policial ocupado, mas o que importa é a frase dita por um dos pais emprestados. “O fato de ela não ser minha filha biológica não vai me impedir de amá-la.” É um raro momento de humanidade num thriller frio e cerebral. Jo Nesbø, o autor do livro, é músico e escritor. O título de um de seus livros mais conhecidos resume sua obra – Blood on Snow, Sangue na Neve.
Na trama, o alcoólatra em recuperação Harry Hole é um detetive estrela da cidade de Oslo, na Noruega. Isso se deve pelo fato de que treinou com o FBI e estudou psicopatas, sendo o único policial da cidade a ter conseguido prender um – detalhe omitido do longa. Devido a isso, quando mulheres começam a desaparecer misteriosamente, algumas aparecendo mortas das formas mais cruéis, e bonecos de neve surgem nos locais, o errático homem da lei se mostra a escolha mais óbvia para tentar solucionar o caso. Na delegacia aparece Katrine Bratt, empenhada jovem agente, transferida da divisão de crimes sexuais, que desenvolve com Harry uma relação de pupilo e mentor.
Esta é outra deficiência de Boneco de Neve. É um suspense gelado, sem medo ou sustos. Não ficamos tensos ou tememos por qualquer dos personagens, pois não tivemos tempo suficiente para conhecê-los. O filme nos joga diretamente na ação e a sensação que fica é a de que começamos a ler um livro pela metade.
Filho de ator e diretor (Hans Alfredson), irmão de outro diretor (Daniel Alfredson), Tomas pertence a uma linhagem do cinema nórdico. Ele próprio já recebeu duas vezes o Guldbagge, o Oscar da Escandinávia, pelos filmes Four Shades of Brown, em 2004, e Deixa Ela Entrar, em 2008. Três anos mais tarde, dirigiu, para um consórcio franco-britânico, O Espião Que Sabia Demais, adaptado do livro de John Le Carré sobre o lendário Limey, agente duplo infiltrado no serviço secreto de Sua Majestade, nos anos 1970. Toda essa trajetória laboriosamente construída, senão planejada, arrisca-se agora a ruir.
Como de perto ninguém é normal, todos os personagens têm segredos a esconder. E como se a trama fosse insuficiente – afinal, é só um serial killer -, outra das muitas subtramas diz respeito a um milionário que banca a candidatura de Oslo para ser sede dos jogos olímpicos de inverno, e o personagem é interpretado por J.K. Simmons. No melhor estilo Harvey Weinstein, o poderoso Simmons é um “womanizer” que tem até o seu cafetão, um obstetra que possui uma clínica clandestina de abortos e age de forma suspeita para dispersar a atenção do público sobre quem é Snowman. Quando sua identidade é revelada no desfecho, você vai murmurar consigo – claro, só poderias ser. Quem mais?
Mas não apenas isso, olhe o pedigree do longa: produção de Martin Scorsese, edição de sua fiel escudeira Thelma Schoonmaker, distribuição da Universal, direção de Tomas Alfredson, e estrelado por Michael Fasssbender e Rebecca Ferguson. Ou seja, o sonho de qualquer cinéfilo.
Na Romênia, o costume de decorar uma figura de neve com contas de cabeças de alho é conhecido há muito tempo: acreditava-se que isso promovia a saúde das famílias e as protegia do poder das trevas.
Até mesmo o motivo do assassino é alterado, criando uma revelação enfadonha, servido por um desfecho tão ridículo que beira risadas. De fato, os envolvidos precisaram se esforçar muito para tentar dar algum sentido a tudo, fazer as cenas terem alguma conexão. Em variados momentos me peguei boquiaberto, sem acreditar que tal cena tenha sido filmada, e pior, entrado no corte final do longa. São momentos pra lá de bizarros nos quais me perguntava se não teria outra forma de transmitir o almejado. Na apresentação de Harry e Rakel, por exemplo, o detetive ao acordar num banco de praça anda até a galeria onde a mulher trabalha e simplesmente para do lado de fora, olhando pela vidraça a ex-companheira falar. Já em outra cena, uma criança encapetada, faz caras e bocas demoníacas na janela do carro onde o detetive conversa com um suspeito. Acho que era a tentativa de um susto, mas não vingou.
Com efeito, é por meio de lendas e fábulas que o boneco de neve entrou em nossas vidas. Assim, existem muitas histórias para descrever sua presença nesse período, sendo uma delas a representação à Santíssima Trindade, devido ao fato do boneco ser feito com 3 bolas de neve.
O que conta, e muito, no livro são justamente as entrelinhas, os detalhes. A forma como o autor trabalha minuciosamente cada personagem, esmiuçando suas personalidades, criando para cada um deles um passado e uma história própria, entrelaçada igualmente em mistério e se misturando no todo, ao ponto de dificultar bastante uma adaptação, já que seria praticamente impossível retirar uma subtrama e os personagens nela envolvidos sem afetar o resultado final. Cada detalhe está interligado, como uma peça do grande quebra cabeça, capaz de ruir se um bloco for retirado.
Boneco de Neve é um whodunit (who done it?), termo usado para aquele tipo de suspense, sejam livros ou filmes, no qual precisamos descobrir o assassino perante um leque de possibilidades de personagens. Esta estrutura remete aos clássicos da literatura e do cinema, aos livros de Agatha Christie, por exemplo, e à velha máxima “o mordomo é o culpado” – quem nunca ouviu? De fato, o livro de Nesbo é um suspense básico, de caça ao serial killer, cuja particularidade do criminoso é espalhar bonecos de neve perto de seus ataques às vítimas, todas mulheres. Afinal, todo serial killer precisa de sua marca registrada.
Segundo uma antiga lenda europeia, São Francisco de Assis considerava a criação de bonecos de neve uma espécie de método para combater os demônios. E de acordo com outra lenda cristã, os bonecos de neve são anjos, porque a neve é um presente do céu. Isso significa que o boneco de neve nada mais é do que um anjo que pode transmitir os pedidos das pessoas a Deus.
Nenhum estranhamento que o filme seja bem montado – talvez, considerando-se que é sobre um criminoso brutal, que esquarteja suas vítimas, arrancando-lhes pedaços. O estranho é que Boneco de Neve, no limite, seja tão elegantemente montado por Thelma, e isso tem a ver com o visual ‘clean’ que Alfredson adota em seu relato. A chave é sempre o boneco de neve, que já aparece no prólogo e que vai seguir como prenúncio para as demais mortes. Sendo o filme tão bem-feito e interpretado por Fassbender, Charlotte Gainsbourg, Rebecca Ferguson e Val Kilmer – o pobre J.K., infelizmente, não chega a ser um personagem para defender -, a questão incômoda que fica com o espectador é relativamente simples. Se é tudo tão bom, em partes, como e por que Boneco de Neve consegue ser tão decepcionante no conjunto?
A origem desses bonecos é muito incerta. Segundo o autor de The Story of Snowmen (A História do Boneco de Neve), Bob Eckstein, a primeira vez que se escreveu sobre eles foi na Idade Média. De fato, existe um documento do ano de 1380 em que se pode ver uma ilustração deste tipo de figura. Ou seja, mais de seis séculos de história.
Não, Boneco de Neve não é a continuação de Uma Noite Mágica (1998), comédia natalina com Michael Keaton. Tampouco mais uma sequência do terror tosco, de baixíssimo orçamento, Jack Frost (1997). Trata-se de um suspense baseado no livro homônimo, parte de uma série policial protagonizada pelo detetive Harry Hole, do autor norueguês Jo Nesbo.
No lado positivo, Schoonmaker se vira como pode na montagem, e a fotografia de Dion Beebe é o chamariz. De resto, sabemos quando os envolvidos começam a se pronunciar contra o filme, como o diretor Alfredson (que afirmou ter deixado de filmar 15% do roteiro) e Fassbender (declarando sua falta de gosto pelo filme e seu desfecho), é que algo está realmente errado. Uma pena. Um baita desperdício de material, que poderia ter rendido uma interessante série policial no cinema; já que elogios como “macabro e perturbador, o livro mais ambicioso de Nesbo”, “diabolicamente complexo e terrivelmente prazeroso” e “tão arrepiante quanto O Silêncio dos Inocentes” foram tecidos respectivamente por importantes veículos como o The Guardian, New York Times e Sunday Times ao livro de Nesbo. Já ao filme de Alfredson, encontraremos poucos elogios.
Boneco de Neve é um filme bem-feito, esplendidamente fotografado. Passando-se no inverno, como Terra Selvagem, de Taylor Sheridan – outro thriller em cartaz e superior, também com um casal de policiais (Jeremy Renner e Elizabeth Olsen) a investigar o assassinato de uma jovem índia -, o filme beneficia-se da paisagem nórdica. Praças, esculturas, pontes, tudo foge ao repertório visual sórdido da maioria das produções hollywoodianas do gênero. Faz sentido citar Hollywood. O filme é produzido por Martin Scorsese, que emprestou a Alfredson sua montadora preferida, Thelma Shoonmaker, a viúva de Michael Powell. Só para lembrar, Thelma foi indicada seis vezes para o prêmio da Academia, cinco delas por filmes dirigidos pelo amigo Marty. Venceu três – por Touro Indomável, O Aviador e Os Infiltrados, em 1981, 2005 e 2007.
Na Europa, bonecos de neve sempre eram feitos ao lado das casas, luxuosamente decorados com guirlandas e utensílios domésticos, envoltos em lenços e outros acessórios. Além disso, cenouras foram colocadas em vez de um nariz, para cultuar os espíritos que garantem boas colheitas e fertilidade da terra. Ainda, um balde invertido na cabeça simbolizava a riqueza da casa.
Bem, até agora só falei do livro, que é sim um bom suspense e tem a capacidade de nos prender até o seu desfecho. Já o filme, escolhe um caminho bem mais tortuoso na hora de levar às telas o romance de Nesbo. Lembra o que eu disse das peças? Pois aqui no longa de Alfredson faltam tantas peças, que o quebra cabeças sequer consegue se erguer. Ele treme tanto que constantemente desaba. Tudo é tão despido e desmontado do livro, que, sem exageros, parece irreconhecível. É como se tivessem usado apenas os nomes dos personagens, mas retirado toda a sua personalidade, sua essência, seus relacionamentos uns com os outros, e as situações. Tudo é tão apressado, narrativa atropelada, grandes trechos esquecidos. Se o livro fosse um carro novo, o filme seria apenas sua carroceria, sem qualquer outra parte que o compõe, incluindo os pneus. E o que sabemos de carros sem pneus? Isso mesmo, ele não anda.