Depois de passar uma temporada morando na rua, com três filhos a tiracolo — o mais novo ainda bebê —, a mineira Carolina Maria de Jesus conseguiu um teto para a família. Era um barracão de madeira às margens do Rio Tietê, na zona norte de São Paulo. Atrás da casa havia um lixão, onde um frigorífico jogava carne com creolina, para evitar que alguém comesse.
Copyright Grupo Perfil. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Perfil.com Ltda.
Até as escolas municipais festejaram a autora, o que fez com que os pais dos alunos de Vera, assim como os próprios estudantes, passassem a enxergá-la com outros olhos. “Foi engraçado. Parecia que eles estavam me vendo pela primeira vez. Numa reunião com os pais, uma das mães se levantou e disse que sentia muito orgulho de o filho ter como professora a filha de Carolina Maria de Jesus. Fiquei surpresa. Isso nunca tinha acontecido.”
Parte do material, primeiro, virou matéria de jornal, depois, numa edição mais cuidadosa e completa, Quarto de Despejo. Mas ela gostava mesmo de fazer poemas, alguns inclusive já havia conseguido publicar em jornais, antes do encontro com o repórter. “Determinada, ela costumava andar pelas redações anunciando-se poetisa”, afirma Dantas.
A vida em Santana se transformou no livro Casa de Alvenaria (1961) — depois ela ainda publicou Pedaços de Fome e Provérbios (1963). Três anos depois que a família estava enfim bem-acomodada e em residência própria, Carolina comunicou que havia comprado um sítio próximo a São Paulo, em Parelheiros, e que eles iriam se mudar. “O lugar era péssimo. Não tinha nem luz”, conta Vera. “Então a vida começou a piorar muito. Meus irmãos ficaram revoltados. O dinheiro era curto.”
Aos 7 anos de idade, ingressou no colégio Allan Kardec, a primeira escola espírita do Brasil, com o suporte financeiro da patroa de sua mãe, que era lavadeira. Estudou na instituição por apenas dois anos, mas foi o bastante para ser alfabetizada e se apaixonar pela leitura.
Carolina tinha de fato esperança que um dia os políticos dariam um jeito para mudar a vida dos pobres. Uma crença que, em parte, veio de uma experiência inusitada. “Quando minha mãe saía para catar papel, usava um saco na cabeça, segurava outro apoiado nas costas, e com o braço livre me carregava no colo”, conta Vera. Não importava se estivesse fraca, por falta de comida, ou doente.
Carolina Maria de Jesus morreu em 1977, em um sítio localizado em Parelheiros, periferia da zona sul da capital paulista, onde morava desde 1969. A causa da morte foi insuficiência respiratória. Após falecer, outros seis livros ainda foram publicados, a partir de anotações e materiais deixados pela autora, são eles: Diário de Bitita(1977); Um Brasil para Brasileiros (1982); Meu Estranho Diário (1996); Antologia Pessoal (1996); Onde Estaes Felicidade (2014) e Meu sonho é escrever – Contos inéditos e outros escritos (2018).
Em 1961, um ano depois do lançamento, o livro virou argumento para o teatro, e estreou com a atriz Ruth de Souza no papel de Carolina. No mesmo ano, a escritora lançou um disco de 12 faixas com sambas e marchinhas de sua autoria — Carolina Maria de Jesus, Cantando Suas Composições. A todo esse barulho seguiu-se o esquecimento. A escritora que havia chacoalhado o mundo literário morreu no anonimato e na pobreza, num sítio em Parelheiros, no extremo sul de São Paulo, em 1977.
Quando o livro foi publicado, muitos duvidaram que uma mulher com tão pouca instrução fosse capaz de escrever uma obra assim relevante e questionadora. Outros acharam impossível. O que não impediu que surgissem admiradores e defensores. O poeta Manuel Bandeira escreveu no jornal O Globo que o preconceito era a principal razão de as pessoas não acreditarem que uma “negra favelada” pudesse ter escrito Quarto de Despejo. Foi além, dizendo que ninguém seria capaz de “inventar” um texto como o de Carolina.
O professor mineiro Warley Matias de Souza, especialista em literatura, conta que Carolina se mudou para São Paulo em 1937, após ter sido acusada injustamente, junto com a sua mãe, de um roubo em Minas Gerais.
Na capital paulista, ela foi trabalhar como empregada doméstica na casa de um cardiologista renomado. Na residência de Euryclides de Jesus Zerbini, o primeiro médico da América Latina e do Brasil a realizar um transplante de coração, passava as suas folgas dentro da biblioteca que ele tinha saciando sua sede por leitura.
“Ela, desde pequena, assumiu esta coisa da escrita e da leitura, então ela vivia lendo”, contou Tom Faria, escritor e biógrafo da Carolina Maria de Jesus ao Jornal Nacional.
Apesar do sucesso efêmero, a escritora deixou um legado literário importante, objeto de estudo de pesquisadores no Brasil e no mundo. “Ela é precursora da Literatura Periférica”, diz Fernanda Rodrigues de Miranda, da Universidade de São Paulo, uma das dezenas de pesquisadores cuja tese de mestrado tratou da autora. “Carolina traz o cotidiano periférico não somente como tema, mas como maneira de olhar a si e a cidade”, diz Fernanda.
A miséria era tanta que comida é uma questão do início ao fim do livro. “O dinheiro não deu para comprar carne, fiz macarrão com cenoura. Não tinha gordura, ficou horrível. A Vera é a única que reclama e pede mais. E pede: Mamãe, vende eu para a dona Julita, porque lá tem comida gostosa.” Como atrás do barraco de Carolina tinha um lixão, na intenção de proteger os filhos, e sabendo da fome que todos passavam, vivia dizendo que ninguém podia pegar comida de lá. Mas, algumas vezes, não tinha escapatória. “Eu ontem comi aquele macarrão do lixo com receio de morrer.”
“Negrinha feia e chata.” Com essas palavras, Carolina registrava como as pessoas se referiam a ela desde criança. Na Favela do Canindé não foi diferente. “As pessoas não gostavam muito dela”, diz Dantas. Carolina não era como a maioria e não conseguia socializar. “Minha mãe tinha um vocabulário mais erudito. Nós (os filhos) muitas vezes não entendíamos direito o que ela dizia”, diz Vera, que conta que os vizinhos chegaram a colocar fogo no barraco deles. “Eu me lembro até hoje que eu chorava que meu carrinho de boneca estava pegando fogo.”
Seus estudos foram interrompidos quando, ainda em 1924, sua família se mudou para Lageado (MG) a fim de trabalhar como lavradores. Mas as dificuldades financeiras no interior mineiro levaram Carolina, aos 16 anos, a partir para Franca (SP), onde atuou como auxiliar de cozinha e doméstica.
Negra, catadora de papel e favelada, Carolina Maria de Jesus foi uma autora improvável. Nasceu em 14 de março de 1914 em Sacramento, Minas Gerais, em uma comunidade rural, filha de pais analfabetos. Foi maltratada durante a infância, mas aos sete anos frequentou a escola — em pouco tempo, aprendeu a ler e escrever e desenvolveu o gosto pela leitura.
A intimidade com a fome e a discriminação sentida na pele deixaram marcas na obra de uma das mais importantes escritoras negras da literatura brasileira. Mulher negra, mãe solo e moradora de uma comunidade pobre, Carolina Maria de Jesus nunca deixou de retratar em seus livros problema sociais e de atribuir culpas a governantes do país já no início do século passado.
Carolina era filha de uma família de lavradores, estudou apenas dois anos formalmente e sua infância foi marcada por adaptações a novas cidades. A família viveu em três municípios diferentes em seis anos, entre 1923 e 1929: Lajeado (MG), Franca (SP) e Conquista (MG). Mais tarde retornaram para Sacramento, onde ela permaneceu durante a adolescência.