O indivíduo contemporâneo, recolhido à experiência da sociabilidade familiar, introduz neste espaço de prática social a demanda crescente por relações igualitárias, cujos efeitos têm sido descritos sob o nome de crise da família.
A sociedade contemporânea combina aspectos arcaicos e modernos porque possui, ao mesmo tempo, ideias e pré-conceitos de séculos atrás, como o machismo e a discriminação racial, e ainda produz avanços nos direitos individuais e coletivos.
Seja como for, é assim que devemos interpretar e diferenciar uma série de desafios atuais - em particular, distinguir entre o problema de como suportar a existência (o que Pascal chamava, no século XVII, de "divertimento" mundano para escapar aos dilemas da finitude humana) e a questão, mais circunscrita, do sentido da vida. As igrejas, os Estados, as empresas são, sem dúvida, suportes da existência, e em parte continuam sendo horizontes de sentido coletivo e até mesmo individual. Como suportes, permitem refinar e até mesmo anestesiar a questão do sentido por meio de rituais, do sucesso ou das ambições. Mas como polos de gestação de sentido, não conseguem mais, muitas vezes e para muitos, se erigir como um verdadeiro horizonte.
Essa mudança contemporânea deve ser interpretada na sequência de uma transformação mais ampla e mais importante, pois não estamos diante apenas da transição do centro de gravidade da nossa vida - do público para o privado. Recriada inúmeras vezes a partir da caracterização feita por Tocqueville essa separação foi o grande pano de fundo do nascimento do individualismo moderno. Para Tocqueville, trata-se de legitimar o Ideal do Trabalho - o "Burguês" - contra a Virtude republicana do Cidadão -, uma variante axiológica da distinção feita por Benjamin Constant entre a liberdade dos antigos e a dos modernos. Em nossa sociedade, para além desse processo, assistimos a uma valorização do ideal do amor - o "Amante" - contra o Cidadão e contra o Burguês (como veremos mais adiante). Se o anelo atual descende em parte das aspirações do individualismo (e, nesse aspecto, a visão de Tocqueville continua certeira), as formas de aspiração à felicidade próprias do individualismo contemporâneo diferem das do individualismo do passado. No individualismo "antigo" - retomemos as palavras de Tocqueville - há uma tensão entre a felicidade coletiva e o interesse pessoal. Hoje, por outro lado, como mostram os limites da figura do Cidadão, há uma tensão entre os interesses coletivos e a felicidade pessoal.
Diante de todos esses contextos, podemos interpretar o papel original do Ser Humano como a espécie responsável pela ação de intervir e transformar a estrutura e ambiente do planeta com o objetivo de facilitar, fortalecer e proteger a evolução e regeneração da vida.
O amor se tornou, pois, um ideal pelo qual as pessoas dizem estar dispostas a morrer, ao mesmo tempo em que já não cumpre - ou quase nada - essa função. O amor é mais que nunca um horizonte de sentido pessoal; porém, ao contrário dos ideais do Crente, do Cidadão ou do Burguês, essa plenitude de sentido não é uma base sobre a qual os indivíduos questionem ou ergam sua lealdade para com a coletividade.
A consciência prometeica do sujeito trabalhador/produtor sempre foi tênue na América Latina, como foi a assimilação da personalidade a um único trabalho - a tal ponto que a identidade, nas classes médias, acabou sendo descrita como uma "decência" (indicando o pertencimento social e cultural a um grupo social privilegiado), e a tal ponto que, entre os trabalhadores, a pluriatividade foi sempre a regra. Essa foi uma perspectiva que os regimes nacionais populares consolidaram e fortaleceram, ainda que paradoxalmente, pois fizeram do trabalho o âmbito por excelência da produção de direitos e da cidadania. É claro (será necessário dizê-lo?) que muitos trabalhadores da época estavam satisfeitos com seu trabalho, e muitos se esforçaram para realizá-lo da melhor maneira possível, por probidade e por consciência profissional. Mas, o que prevaleceu foi seu papel na independência nacional, na integração social, na dignidade política dos trabalhadores. Mesmo na versão latino-americana da tradição socialista e marxista, o trabalho esteve longe de adquirir o significado prometeico que possuía em outros lugares (Löwy, 2007). O sentido do trabalho estava fora dele - heterocentrado.
Nesse aspecto, a diferença é perceptível entre a situação na Europa e na América Latina. Contrariamente ao que certas interpretações evolucionistas deixaram entender o início do século XX, a modernidade não foi acompanhada de um desaparecimento de crenças religiosas, ou seja, a Europa Ocidental é mais a exceção do que a regra (Hervieu-Léger, 1999). No resto do mundo, observa-se uma revanche ativa de Deus, que toma às vezes a forma de uma reinstitucionalização, às vezes de uma expansão de novas redes sociais, e frequentemente de uma busca cada vez mais personalizada do cultivo da própria espiritualidade. Seja como for, a importância da prática religiosa, as conversões religiosas ou a crença em diferentes entidades invisíveis na América Latina são tais que - pareceriam - levar a uma atenuação do diagnóstico da centralidade do amor intramundano.
Nesse registro, ao contrário do que muitos afirmam, as significações autocentradas do trabalho não podem ser reduzidas a uma única distinção entre os assalariados, a saber aqueles que realizam tarefas pouco qualificadas e expressam essencialmente uma relação "instrumental" com o trabalho, e aqueles que ocupam posições de responsabilidade ou cargos de maior prestígio e dão testemunho de uma relação mais "expressiva". Se uma correspondência desse tipo pode ser observada em certos momentos, no fundo o que nossos trabalhos de investigação rejeitam são formas plurais de valorização do trabalho em todos os grupos sociais. Desse modo, se a experiência profissional das mulheres é caracterizada por renda menor, taxa de participação na força de trabalho menor, inserção em atividades menos prestigiosas, de menos reconhecimento social ou de maior vulnerabilidade, nada disso as impede de expressar uma apreciação positiva do trabalho - mesmo aquelas que exercem as tarefas mais "humildes" ou precárias.
A militância revolucionária nunca foi uma experiência das massas. O militante se autodesignava membro de uma vanguarda, exigindo dedicação exclusiva e total, e para muitos seus feitos eram uma experiência marginal e, no fundo, episódica. Contudo, apesar dessa prática modesta, seu peso imaginário foi fundamental. O militante foi um modelo político de sujeito cuja marca nas lutas sociais não pode ser ignorada, uma figura em que a realização de si estava subordinada ao advento de um sujeito coletivo. A luta com os outros era um horizonte de sentido pessoal.
Mas o amor não é apenas o nosso grande ideal de sacrifício; é também, e cada vez mais, o que supomos deve conferir - e confere - sentido à nossa existência. Na ausência dele, o sentido da vida - todos já o vivenciamos de uma forma ou de outra - se torna opaco. Na ausência dele, para muitas pessoas, o interesse pelo trabalho, a ambição, o poder, a busca da riqueza, embora não desapareçam, são vividos como destituídos de sentido. A felicidade - e não apenas o ideal - está no amor.
Mas, em forma progressiva, mesmo entre membros dos setores populares, observa-se uma prática mais individualizada da religião: por exemplo, um número significativo de pessoas afirma crer em Deus à sua maneira: em toda parte, impõe-se uma representação de forte diferenciação e individualização no âmbito das associações coletivas e das práticas e crenças religiosas. Para alguns indivíduos, por exemplo, o vínculo religioso toma a forma de uma conversa bastante pessoal, e por vezes cotidiana, com a divindade - uma conversa que, em clara ruptura com várias outras versões da subjetividade moderna, transmite a convicção de que por meio da fé nunca se está sozinho. A divindade protege-os de uma solidão que deve ser entendida não apenas em termos espirituais, mas também sociais - como se diante do desafeto das instituições e do desinteresse que estas são capaz de demonstrar pelos indivíduos a divindade fosse uma proteção e uma companhia constantes. O sentimento é inequívoco: alguém se importa.
Algo semelhante acontece com a evocação dos sentimentos nas tradições políticas. No liberalismo, por exemplo, mediante o conceito de "espectador imparcial" em Hutcheson e em Adam Smith, elaborou-se uma versão política da "empatia" universal entre os seres humanos. Na mesma linha, David Hume foi particularmente sensível ao processo de expansão da "afinidade", que gradualmente passaria de pequenos círculos para grupos cada vez maiores de pessoas, chegando a ver nisso um dos principais pilares da política e da sociedade modernas. Todavia, também aqui, como na ágape, a afinidade é apresentada como um fato natural (já presente entre os estoicos e em sua concepção de cosmopolitismo) e, acima de tudo, como na ágape, são deixados de lado os desafios que outras formas amor - mais individualizadas e carnais, e não tão gregárias, como o amor erótico e conjugal - produzem na vida social. Além disso, observações semelhantes poderiam ser feitas sobre conceitos análogos (e.g., o altruísmo sob o humanismo) e, mais tarde, sobre a fraternidade revolucionária, a solidariedade socialista ou nacional, e hoje, sobre a reatualização do cosmopolitismo como resposta à interdependência ecológica e ou sobre a tradição de zelo no pensamento feminista. Todas essas abordagens, apesar de suas diferenças, compartilham o pressuposto comum de que é possível estabelecer laços sociais a partir e por meio da "afinidade" original entre as pessoas, ou mesmo através do amor, sem que, aparentemente, isso apresente grandes dificuldades.
A essas duas grandes referências de sentido, atualizadas e transformadas nos dias atuais, a modernidade acrescentou mais uma: o trabalho - uma atividade inseparável, em seus primórdios, do Burguês. Além de sua natureza coercitiva (em uma sociedade capitalista, como Marx explicou claramente, todo trabalhador livre é obrigado a vender sua força de trabalho no mercado, o trabalho nos tempos modernos é um valor e uma importante fonte de sentido vital.
E dentre todos esses Outros significativos, os filhos, e sobretudo o cônjuge, despontam como um Outro particularmente significativo. François de Singly (2006), acertadamente, chamou a atenção para esse ponto: nossas vidas são marcadas por uma série de socializações secundárias, mas entre elas, uma é mais importante que todas: precisamente a socialização conjugal.
É essa versão contemporânea do amor apaixonado (conjugal e erótico) que, por sua tendência a tornar-se o horizonte de sentido de muitos de nossos contemporâneos, suscita uma série de grandes desafios para a sociedade. A paixão amorosa pode ser um foco de gestação de sentido na vida pessoal, mas não pode ser nem uma bússola moral da existência nem, muito menos, uma experiência a partir da qual construir um sentido coletivo.
This paper argues that the loss of meaning of collective life in contemporary societies is a result of the increasing importance of love as source of meaning for personal existence. The argument is developed in three steps. Firstly, it discusses the importance that love as producer of meaning has acquired in the lives of contemporary individuals. Secondly, we explore four main figures of meaning (the Believer, the Citizen, the Bourgeois and the Lover), highlighting the specific traits of the figure of the Lover by contrasting it with the other three. Thirdly and finally, we discuss the most salient tensions that the figure of Love poses to today's social life, destabilizing the collective arrangements.
A figura do Cidadão continua sendo uma referência moral e, para muitos, o engajamento político é um horizonte possível de mobilização. Mas é cada vez menos um verdadeiro horizonte de sentido. Sua força, nesse registro, é contrabalançada pela grande inflexão da individualização: a necessidade de conferir um complemento de valor para a vida pessoal e até mesmo de interpretar o engajamento político segundo o que ele traz para a vida pessoal. A militância requer um equilíbrio entre os vários âmbitos da vida. Uma atitude ainda mais importante que esse equilíbrio é buscada entre militantes que, no mesmo período, como no caso do feminismo, politizaram a esfera pessoal. Sob esse novo talante, críticas às organizações coletivas e partidárias se tornam mais frequentes. A perda da singularidade, que muitas vezes implica engajamento político, é severamente criticada. A dimensão deformadora de toda organização, bem como suas tentações autoritárias tornam-se o alvo de muitas críticas. A oblação de si mesmo na figura do sujeito coletivo se dilui. Para alguns, o mais importante não é mais a causa a ser defendida nem o compromisso moral com os outros, mas sim as habilidades e o reconforto pessoal que se obtêm por meio da militância.
É dentro dessa realidade, inextricavelmente experiencial, política e intelectual, que nas últimas décadas se observou uma transformação de grande porte. Por diferentes vias, o que se impôs é o reconhecimento de que as pessoas conferem significados subjetivos cada vez mais singulares ao trabalho. A principal transformação pode ser assim enunciada: o sentido do trabalho é cada vez mais autocentrado.
Desse modo, a busca espiritual pessoal está efetivamente emoldurada por organizações e eventos (por exemplo, encontros ou retiros matrimoniais) que canalizam essa inquietação com conteúdos e disciplinas específicas. Assim, o desenvolvimento espiritual pessoal se (con)funde com um conjunto de exercícios realizados sob a tutela de uma autoridade institucional. Na verdade, os grupos religiosos transformam a sociabilidade e a exploração pessoal em um ofício e em certos momentos é difícil saber qual das duas facetas predomina.
Agrupamos essas três grandes figuras de sentido porque é importante entender que as sociedades modernas, no que diz respeito ao sentido da vida, dispõem de uma pluralidade de grandes significados, cada um perpassado por mudanças específicas. No entanto, e apesar de suas inegáveis diferenças, algo é duplamente comum a essas três grandes áreas de sentido. De um lado, observa-se, em cada uma delas, uma tendência à singularização da questão do sentido. De outro, e apesar de a vida continuar a ser moldada por essa pluralidade de sentidos, isso não impede que observemos o estabelecimento progressivo de uma nova hierarquia de sentidos vitais, na qual, de modo mais ou menos "subterrâneo", o amor (sem desalojar inteiramente as hierarquias precedentes) tende a tornar-se o novo foco prenhe de sentido de existência. Curiosamente, essa centralidade foi reconhecida somente por aqueles que a criticam e mediante fórmulas negativas: niilismo, declínio do homem público, tirania da intimidade, narcisismo, triunfo da insignificância.