Muito se fala, principalmente no contexto de ingresso em universidades públicas, sobre as cotas raciais, sociais e de escolas públicas. Em especial, neste texto, o Politize! trará uma explicação sobre o que são as cotas raciais, como e por que surgiram, o histórico e argumentos usados a favor e contra elas. Fique ligado!
A preferência, geral ou específica, pode ser entendida também como uma ação de contenção ou suspensão consciente da reprodução do grau profundo de desigualdade racial vigente nos nossos colegiados. Por exemplo, aqueles colegiados que têm a totalidade ou a maioria absoluta de professores brancos devem usar o modelo de preferência como uma contenção contra a reprodução da sua brancura e para dar início à reversão da exclusão racial que naturalizaram até agora.
Implementar as cotas epistêmicas é dar um passo complementar e tão radical quanto implementar as cotas étnicas e raciais. Lembremos que estas tocam o corpo discente enquanto mantêm a maioria do corpo docente ainda bastante preso no eurocentrismo fundante da nossa academia, por duas razões: primeiro, porque a Lei 12.990/2014, que determina cotas no serviço público, afeta a composição do quadro de professores em uma escala muito reduzida e bem lentamente; em segundo lugar, porque o conteúdo dos concursos continua sendo controlado majoritariamente por docentes de tendência eurocêntrica e por este motivo favorecem os candidatos brancos que, em sua maioria, ainda contam com maior capital eurocêntrico que os candidatos negros e indígenas.
A sistematização dos modelos de cotas que ofereço aqui é resultado de uma etnografia participativa, construída a longo prazo, em sintonia e sincronia com os eventos que se desenvolveram ininterruptamente ao longo das duas últimas décadas. Temos acompanhado, desde o seu início, o surgimento de um processo coletivo multiétnico, multirracial, multidimensional, autopoiético e em constante transformação, que toca o inconsciente social pelos conflitos e desafios que apresentam, tanto pelo lado da ação concreta de implementação das cotas como pelo lado da reflexão antropológica.
Nestes termos, a implementação desta política foi unidimensional e monocausal: interveio apenas na base da pirâmide acadêmica, o que limitou o ritmo inclusivo capaz de garantir a igualdade racial, jogando-a para um futuro distante, porém praticamente inalcançável durante o presente século. Quanto à Lei 12.990/14 que reserva 20% de cotas para candidatos negros nos concursos para o serviço público, ela opera de um modo exatamente similar, projetando a igualdade racial entre os servidores do Estado para várias gerações adiante. Como a maioria dos cargos diretivos e de salários mais altos é de confiança, eles tenderão, inevitavelmente, a reproduzir a rede de pessoas brancas no topo do poder; e aos negros restarão os cargos básicos em todas as carreiras, e ainda assim em uma posição minoritária demograficamente, pois existe uma grande probabilidade de que sua inclusão seja apenas um pouco maior do que os 20% previstos na Lei.
A descolonização do currículo passa necessariamente, portanto, por enraizar a formação dos futuros licenciados, bacharéis, graduados, mestres e doutores nas bases epistêmicas afro-brasileiras, indígenas e dos demais povos tradicionais. A questão do topo da transformação social conducente à superação do racismo e da desigualdade racial, qual seja, as cotas e as ações afirmativas para docentes negros, se une à questão da base da formação eurocêntrica nas escolas, isto é, às Leis 10.639/2003 e 11.645/2008. Assim, um dos procedimentos complementares a essas leis, e capaz de descolonizar o imaginário racista crônico do nosso ensino básico e superior é incluir os mestres e as mestras dos saberes tradicionais afro-brasileiros e indígenas como docentes nas escolas e nas IFES, de modo a unir as nossas grandes tradições orais indígenas e afro-brasileiras com todas as tradições letradas (ocidentais, indígenas e africanas).
O princípio de preferência é compatível com o mecanismo de cotas percentuais e também com o de reserva de vagas. São dois motivos básicos que justificam sua utilização. Em primeiro lugar, dada a baixa presença de docentes negros e indígenas nas nossas universidades atualmente, é preciso aplicar o princípio geral de preferência: em qualquer concurso da instituição em que se abra uma ou se abram duas vagas, válido para todas as áreas e todas as unidades acadêmicas, haverá preferência para os candidatos negros e indígenas que se candidatarem e que forem aprovados, independente de sua colocação no certame em face dos candidatos brancos.
Sem dúvida, podemos dizer que essa possibilidade prática de ingressar na faculdade é um meio de inclusão e de democratização. Afinal, todos podem iniciar a graduação mesmo que não estejam dentro do sistema de cotas raciais.
Em 2020, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) publicou um estudo sobre sobre ação afirmativa e população negra na educação superior que revela a desigualdade no acesso às educação no país. Conforme o estudo, 18% dos jovens negros de 18 a 24 anos estão cursando uma universidade, e se tratando de jovens brancos o número sobe para 36%.
Prestar a devida atenção a essas aparentes sutilezas na aplicação das cotas faz parte da tarefa requerida de quem se propõe a realizar uma etnografia das cotas orientada por uma postura antropológica antirracista. Afinal, o racismo acadêmico não opera apenas na discriminação, aberta ou parcialmente velada, sofrida pelos candidatos, tal como tem sido relatado frequentemente por colegas, mas também na interpretação assumida por muitas bancas que resultam em desvantagens para os candidatos negros.
A lei prevê 50% das vagas, em cada curso e turno, em todas as universidades e institutos federais. Podem concorrer a essas cotas estudantes pretos, pardos, indígenas e provenientes do Ensino Médio cursado em escolas públicas ou na rede particular com bolsa integral.
Outro aspecto que exige especial atenção neste momento de concepção de um novo e mais amplo Plano de Metas para a construção da igualdade racial no Brasil: a baixa presença de docentes negros nas IFES e de pesquisadores negros nas instituições de pesquisa. Estudos recentes realizados pela equipe do INCT de Inclusão revelam que as vagas abertas para concursos nas IFES têm sido oferecidas de um modo pulverizado, e por isso têm incluído um número de docentes negros muito abaixo dos 20% esperados (de fato, sua inclusão tem ficado até agora em torno de 5%). Conforme concluem Mello e Rezende no seu exaustivo estudo sobre os concursos para docentes na IFES, os resultados são estarrecedores:
Esses novos sistemas de cotas, de preferência e de busca ativa, são tão constitucionais quanto o sistema de cotas previsto na Lei 12.990/2004, que depende da abertura de um mínimo de três vagas. E esta, por sua vez, reproduz o mesmo mecanismo de inclusão da Lei 12.711. De fato, a ruptura com a ideologia universalista de mérito em uma sociedade racista é exatamente a mesma, em todos os casos: um candidato aprovado, negro ou indígena, terá prioridade de ingresso diante de um candidato branco, mesmo que este alcance uma pontuação mais alta. A preferência e a busca ativa apenas individualizam o mecanismo que nos outros modelos (cotas, bônus, vagas) são aplicados para contingentes. O critério de 20% de cotas para negros quer dizer, na prática, que de cada 100 vagas oferecidas, os candidatos negros aprovados terão preferência na ocupação de 20 delas. Não há de se esquecer, porém, que a aplicação da preferência e/ou da busca ativa dependerá da disposição da IFES em assumir abertamente o seu valor institucional antirracista. Assim, ao invés de esperar acumular uma, duas e finalmente três vagas para abrir um concurso para docente ou técnico-administrativo (o que pode demorar anos), a universidade poderá acionar imediatamente a preferência e a busca ativa a cada vez que disponha de apenas uma ou duas vagas.
Por isso, no momento de sua inscrição, é muito importante prestar bastante atenção aos requisitos exigidos pelo curso que você está se candidatando. Embora algumas pessoas continuem desfavoráveis às cotas, por meio de dados, podemos comprovar que, de fato, elas foram um passo inicial para a democratização do acesso ao ensino superior no Brasil.
O tema divide opiniões: existem pessoas que concordam com o sistema de cotas, afirmando que é uma forma de diminuir as desigualdades, tanto sociais como raciais, e também de garantir a democratização do acesso à educação superior. Porém, também há quem não concorde, afirmando que isso implica numa concorrência desleal e vai de encontro com a meritocracia, além de haver a possibilidade de fraudes no sistema de cotas.